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sexta-feira, 18 de maio de 2007

As mortes de Eurico Lara, o mais mitológico goleiro da história do futebol brasileiro

Ricardo Lugó

Versão 1

- Agora está entre mim e ti.
- Tristeza um duelo entre irmãos.
- Tristeza, mas Deus quis assim.
- É, não tem jeito.
- Não tem.

Estamos no ano de 1935. Final do Campeonato Farroupilha, competição que celebrou os 100 anos da revolução de mesmo nome. Grêmio e Internacional disputam o título. Pênalti a favor do Internacional.

- Ainda bem que a mãe não está aqui.
- Tristeza um duelo entre irmãos.
- Tristeza, mas Deus quis assim.
- É, não tem jeito.
- Não tem.

No gol do Grêmio, Lara bate uma mão contra a outra, posiciona-se. Pelo lado do Internacional, seu irmão ajeita a bola, mas de seu nome ninguém mais se lembra. O atacante toma distância, bufa e raspa o pé no chão, como um touro. Parte para a bola e acerta um petardo. Ouve-se um estrondo no então Estádio da Baixada, estrondo de provocar revoada de pombos. O goleiro salta para a bola como ave de rapina. Trinca os dentes e crispa o rosto. Encaixa o balaço no peito. Desaba sobre o gramado, agarrado à presa. Pulmões estraçalhados, fiapo de sangue escorrendo pelo canto da boca. Não reage. Está morto. Uma chuva de chapéus e rosas cobre a pequena área para homenagear o herói tricolor.

Versão 2

- Abre!
- O Estádio está lotado, não posso.
- Abre!
- Se me pegam fazendo isso, estou na rua.
- Abre!

O portão do alambrado que separa a arquibancada do gramado do Estádio da Baixada é aberto. Um homem caminha em direção ao gol, vestindo um camisolão de hospital. Despacha o goleiro do Grêmio com um gesto e, enquanto o atacante do Internacional ajeita a bola para a cobrança do pênalti, despe-se do camisolão. Está com uniforme de goleiro e chuteiras por baixo das vestes de tísico.

- É o Lara!

O Estádio da Baixada entra em frenesi. A muralha de Uruguaiana fugira do hospital em que estava internado para se tratar de um grave problema de saúde. Agora aparecera lá, para salvar o Grêmio dos infortúnios da vida.

Bater de mãos, bufada, raspar de pés, tirombaço, revoada de pombos, ave de rapina, defesa espetacular, pulmões estraçalhados, fiapo de sangue, morte instantânea, chuva de chapéus e rosas.

Versão 3

- O índio tá aí, quer jogar.
- Está muito enfermo, como quer jogar?
- Disse que nem se estivesse morto ficaria de fora hoje.
- É final, campeonato importante, não tem a menor condição.
- Falou que vai fazer a melhor partida da vida.
- Como está a cara dele?
- Cara de quem não perde hoje por nada deste mundo.
- Dá a camisa pro índio. E seja o que Deus quiser.

Lara, também apelidado de o “Índio de Uruguaiana”, entra em campo. Está fraco, abatido, move-se com dificuldade. A doença o consome impiedosamente. Aparenta um trapo diante do colosso que fora anteriormente.

O jogo começa disputado, brigado, como todo Gre-Nal. Lá pelas tantas, pênalti para o Inter. Lara em posição, atacante ajeita a bola, distancia-se. Ronco, raspar de pés, petardo, pombos enlouquecidos, vôo de águia, encaixe perfeito, frenesi da torcida gremista. O jogo prossegue, Lara definha mais e mais a cada minuto que passa, mas mesmo assim arranja forças para outras defesas importantes. Fim do primeiro tempo.

O goleiro arrasta-se para o vestiário. Mal consegue permanecer em pé. Precisa ser substituído imediatamente. Assiste ao segundo tempo e comemora o título ao final do jogo deitado em uma maca, à beira do gramado. Na mesma madrugada, seu estado de saúde deteriora-se profundamente e o goleiro morre. As ruas de Porto Alegre são tomadas pelo povo em prantos para se despedir do herói tricolor. Das janelas das casas e edifícios, o cortejo fúnebre é reverenciado com uma chuva de chapéu e rosas.

Um pouco de história. Mas só um pouco, pra não estragar a fantasia

Pouco se sabe sobre Eurico Lara, o mais mitológico goleiro da história do futebol brasileiro. Até sua data de nascimento é controversa. Uns dizem que viera ao mundo em 24 de janeiro de 1897, outros que nascera um ano depois, em 1898.

Natural de Uruguaiana, cidade localizada no extremo sudoeste do Rio Grande do Sul, na fronteira com a Argentina, Lara ingressou no Exército e passou a se destacar nos torneios realizados entre as Forças Armadas, chamando a atenção de olheiros gremistas.

O então jogador tricolor Máximo Laviaguerre o viu jogar em uma dessas partidas e dizem ter feito o seguinte relato à diretoria gremista:

- Em Uruguaiana, há um goleiro tão bom que, quando joga, seu time não perde.

Mas Lara não queria deixar a cidade natal. Foi necessário que influentes dirigentes gremistas convencessem algum importante oficial do Exército a transferir Lara para Porto Alegre. Uma vez na Capital, prosseguiu na carreira militar (chegou a tenente e a servir na Revolução de 30) e aceitou o convite do Grêmio, onde jogou de 1920 a 1935 e ganhou 16 títulos, entre campeonatos estaduais e locais (naquela época havia também o Campeonato da Cidade).

O jogo que criou tantos mitos e acendeu o imaginário popular ocorreu em 1935, no dia 22 de setembro. A partida foi vencida pelo Grêmio, 2 a 0, que ficou com o título do Campeonato Farroupilha (nome do gauchão daquele ano, em homenagem ao centenário da revolução de mesmo nome).

Já doente (especula-se que Lara tivesse tuberculose ou sofresse de aneurisma pulmonar ou problemas cardíacos), o goleiro, de fato, atuou no primeiro tempo da partida, informam os historiadores. Fez defesas importantes, mas não é conhecido se o famoso pênalti realmente ocorreu. Sabe-se, no entanto, que seu irmão não era atacante do Internacional.

Terrivelmente consumido pela doença, Lara não retornou para a segunda etapa. Internado após a partida, morreu aproximadamente dois meses depois. Seu cortejo fúnebre e sepultamento reuniram uma das maiores concentrações populares vistas até então em Porto Alegre.

Lupicínio Rodrigues imortalizou Lara em versos da terceira parte do hino do Grêmio, que é de sua autoria:

Lara, o craque imortal
Soube o seu nome elevar
Hoje, com o mesmo ideal
Nós saberemos te honrar


Lara sintetiza o espírito castelhano do Grêmio, único time argentino a disputar campeonatos no Brasil. E Lupicínio também soube sintetizar esta maneira de ser dos tricolores nos versos iniciais do hino, depois de testemunhar uma multidão de gremistas atravessando Porto Alegre a pé, em direção ao estádio, por causa de uma greve de bondes que paralisou a cidade:

Até a pé nós iremos
Para o que der e vier
Mas o certo é que nós estaremos
Com o Grêmio onde o Grêmio estiver


Os diálogos desta crônica são ficcionais e, em alguns casos, frutos da tradição oral que perpetuou o mito de Lara no Rio Grande do Sul. Sobre a morte do goleiro, há muito de fábula e fantasia. Concreta, no entanto, é a vontade de todo torcedor de ver jogadores dispostos a morrer em campo para a honrar as cores e a tradição do seu time de coração. Para os torcedores de outros times, este é apenas um desejo etéreo, romântico. Já os gremistas tiveram Lara. Chuva de chapéus e rosas.


"Ei, essa não é a camisa do São Paulo!", reclama o mitológico e fantasmagórico goleiro gremista a este cronista praticante do jogo do copo.

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