A rivalidade entre Boca e River não é nada perto do que vou lhes contar
Por Ricardo Lugó
A Avenida 23 de Maio é uma das mais importantes de São Paulo. Começa na Praça da Bandeira, no Centro, e estende-se até o Obelisco do Ibirapuera, na Zona Sul. Depois, muda duas vezes de nome. Vira Rubem Berta e Moreira Guimarães e espicha-se quase até o Aeroporto de Congonhas, quando então ganha ares presidenciais e transforma-se em Washington Luís.
No final da década de 40, muito antes da inauguração da avenida, existiu no trecho que hoje fica entre os viadutos Pedroso e Condessa de São Joaquim, o campo de futebol do Éden Liberdade, time de várzea mais importante e aguerrido do bairro da Liberdade.
Quando o Éden recebia em seu campo o Huracán, da Bela Vista, travavam-se no campão de terra batida (e fiapos de grama nas bordas) duelos que deixavam as batalhas de Tróia e da Normandia e as partidas entre Boca e River parecendo histórias de ninar, mixurucas, diria Tia Noca.
As intenções do Huracán já ficavam visíveis na cor do uniforme que usava: marrom. Isso mesmo. Talvez o único time com uniforme de cor marrom do mundo. Um escrete, caro leitor, que escolhe para tingir seu uniforme a cor marrom seguramente não está disposto a inventar carrosséis como o de 74, a figura do ala ofensivo, a folha seca, o elástico. Se Cruyff jogasse no Huracán seria beque central, teria dois caninos de ouro e atenderia pela alcunha de Zelão Fumaça. Na primeira trivela que tentasse dar, seria chamado de canto para refletir melhor sobre a vida.
Nestes embates entre Éden e Huracán ganhou ares mitológicos a figura de um jovem centroavante chamado Olten Ayres de Abreu. Olten ficou famoso nos anos 50 e 60 como árbitro, talvez o mais importante daquela época depois de Armando Marques. Chegou a apitar jogos na Copa do Chile, em 62.
Mas nos idos da década de 40, Olten era um centroavante provocador. Entrava em campo tocando uma corneta e desafiando a torcida adversária. Iniciou brigas tremendas. Em uma delas, depois de trocar sopapos com adversários, colegas e torcedores, aboletou-se no vestiário.
Talvez o leitor, pacifista que é, preocupado com o derretimento das calotas polares e os infortúnios dos pandas, bom apreciador de vinhos e das gravuras de Goya, leitor assíduo de Fernando Pessoa, olhar sempre vigilante aos descaminhos do colesterol, não saiba que o vestiário é o último lugar em que alguém se refugia em uma situação de, digamos, emotividade exagerada durante uma partida disputada na várzea. Porque do vestiário não há escapatória. Os cinqüenta cabras que estão lá fora com ares de poucos amigos colocariam, facilmente, porta e paredes abaixo em três minutos. Não sobraria vestígio nem para que o zeloso Grissom tentasse descobrir o que acontecera.
De dentro do vestiário, como era de se imaginar, partiu um azougue, um possesso. Olten faiscava, faca reluzente em punho. Sua lâmina brilhava e ofuscava, criava a sensação de alvorecer às seis da tarde. A turba corria em círculos, tentava cercar o touro, que bufava e roncava. Espantou a todos e, dizem, não precisou fazer uso do instrumento que agitava com os braços. Retalhou o ar, mas não feriu ninguém.
Como árbitro, Olten inaugurou a escola de árbitros bons de briga. Impunha-se à base da estatura, da cara feia e de palavrões. Foi o precursor de Dulcídio Wanderley Boschilla, polêmico árbitro dos anos 70 e 80.
Policial militar expulso da corporação e, posteriormente, policial civil, Dulcídio, o Alemão, também não tinha medo de brigas e relacionava-se com os jogadores dentro de campo à base de palavrões. O ex-centroavante e atual comentarista esportivo Casagrande contemporiza. Segundo ele, Dulcídio era um bonachão, não xingava os jogadores para ofendê-los, apenas substituía vírgulas, interjeições e respirações por palavrões.
O ex-locutor esportivo Osmar Santos contou, certa vez, uma história que ilustra bem a carreira de Dulcídio. “Estava no começo de carreira, cobria um jogo no interior de São Paulo apitado pelo Dulcídio, também no início de carreira. Fim de jogo, o time da casa achando que foi prejudicado, torcedores invadem o campo, Dulcídio corre para o vestiário. Quando os torcedores arrombam a porta, ouço um estrondo e um zunido. O Alemão deu um tiro pra cima, a bala furou o teto do vestiário, que era de madeira, e atravessou o chão da cabine de rádio. Quase minha carreira terminava ali”, divertia-se.
No início dos anos 80, em uma partida entre Inter de Limeira e São Paulo, jogo sem nenhuma importância, o zagueiro Bolívar, da Inter (ex-Portuguesa e pai do zagueiro Bolívar que foi campeão da Libertadores em 2006 pelo Inter de Porto Alegre) disse algo que o Alemão não gostou. Dulcídio partiu pra briga ali mesmo dentro do campo, enquanto um Waldir Perez atônito tentava conter o juiz.
No final dos anos 70, em uma mesa-redonda tarde da noite que a TV Record exibia, com veteranos como Sílvio Luís, Álvaro Paes Leme, Alberto Helena Júnior e José Maria de Aquino, foi um jovem e mirrado repórter, Flávio Prado, quem levou o Alemão para as cordas: “Dulcídio, você foi torturador? Você trabalhou para a repressão?”. Estávamos na passagem de bastão de Geisel para Figueiredo. O Alemão dissimulou, rodeou... mas negou.
Dois fatos marcaram a carreira de Dulcídio Wanderley Boschilla. Em 77, no auge da carreira, expulsou Ruy Rei no último jogo da final do Campeonato Paulista entre Corinthians e Ponte Preta. Expulsão merecida. Suspeita, naquele caso, foi a atitude de Ruy Rei. Em 87, já no fim da carreira e vários quilos acima do peso, Dulcídio apitou o último jogo da final do Campeonato Paulista, entre São Paulo e Corinthians. Durante a semana, envolvera-se em um acidente automobilístico que lhe custou algumas costelas quebradas e o falecimento de sua esposa.
Enfaixado, Dulcídio apitou o jogo impecavelmente e, segundos após terminar a partida, ainda no centro de campo, desabou de dor e saiu carregado. A volta olímpica do São Paulo ficou absolutamente em segundo plano diante da saga de Dulcídio naquela tarde.
Já aposentado e muitos quilos a mais que em 87, Dulcídio passou a apitar jogos amadores de veteranos, em clubes de classe média-alta, na cidade de São Paulo. Em um deles, localizado perto do Parque do Ibirapuera, era uma atração à parte. Até as velhinhas dirigiam-se para a beira do campo de grama sintética para se divertir com o Alemão.
Dulcídio bufava, soltava palavrões, não permitia reclamações. Às vezes, como uma avó italiana, colocava uma das mãos na cintura avantajada e chacoalhava a outra mão como se espantasse moscas, como se dissesse “não me encham a paciência, fora daqui todos vocês...”.
O contador Heitor, o advogado Pacheco, o comerciante Manolo, o médico com nome de tenentista João Alberto bufavam, reclamavam, sentiam-se como Rivelinos, Leivinhas, Muricys, Figueiroas, de calções e meiões esticados até os joelhos, pedindo faltas e pênaltis, reivindicando impedimentos. E o gigante Dulcídio dispersava a todos, gritava e xingava, para riso divertido das velhinhas, interpretando com zelo o valente Dulcídio Wanderley Boschilla de décadas passadas e partidas memoráveis.
"Fala de novo se for homem", urrava o centroavante que virou árbitro, mas sempre teve alma de beque central
Um comentário:
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