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segunda-feira, 19 de março de 2007

Do chão trincado e vermelho do sertão, surge Beijoca


Por Ricardo Lugó

- Cuidado com a cobra!
- Tem cobra aqui?
- Apareceu de manhã, matamos, mas sempre aparece uma nova. Todo dia é assim.

Teria de ser, então, um olho na TV, outro na cobra. Atenção redobrada, igual a de um zagueiro central com a tarefa de anular centroavante matador.

Estava em Peruíbe (litoral de São Paulo), verão de 79. Peruíbe, em 79, tinha alguns “índices” pitorescos de civilização que hoje em dia só imagino ser possível encontrar, romanticamente, no Tumucumaque. Visitas sorrateiras de cobras, a mais absoluta escassez de seres humanos, telefones com chiados, televisores que só captavam sombras e ainda por cima multiplicavam, na transmissão do futebol, os jogadores por dois dentro de campo, etc.

A aquele antológico Flamengo e Palmeiras eu assisti assim. Quarenta e quatro jogadores dentro de campo, sexteto de arbitragem, em um aparelho preto-e-branco que mostrava o Palmeiras de camisa cinza (o cinzão) e o Flamengo de cinza e negro.

O Flamengo havia sido campeão carioca em 78 e trazia na escalação vários jogadores que o ajudariam, poucos anos depois, a ganhar todos os títulos possíveis e imagináveis. Júnior, Carpegiani, Adílio, Zico, Tita e Cláudio Adão eram os seus principais nomes naquela tarde, no Maracanã. No comando, o “falso brilhante”, segundo a revista Veja, Cláudio Coutinho.

Do outro lado, um Palmeiras em profunda reformulação, após a perda do Brasileiro de 78 para o Guarani. Dos jogadores experientes, restaram Rosemiro, Beto Fuscão, Pires e Jorge Mendonça. A eles se juntaram sete garotos (Gilmar, Pedrinho, Jorginho, Baroninho, Carlos Alberto Seixas e companhia), comandados por um treinador que já era mestre, mas ainda não havia recebido a distinção: Telê Santana.

Começa o jogo. O silvo do apito do árbitro coincide com o sibilar da nova cobra que se aproxima da casa. Jogo frenético, chuva de gols, o Palmeiras surpreende e faz 4 a 1. A cobra achega-se, agita-se, chocalha. Um olho na tela, outro na cobra, um olho na tela, outro na cobra, repito para mim mesmo. Coutinho parte para o tudo ou nada: coloca o centroavante Beijoca para tentar atenuar o vexame. Entra em campo um rei. O rei do cangaço.

Beijoca entra e não vira o jogo, vira o campo de pernas para o ar. Não atenua o vexame, aprofunda-o. Acerta bofetadas em Baroninho e inicia uma correria que faz o mar virar sertão, a tarde virar noite, o ateu rezar Ave-Maria e qualquer um que se considerasse machão acima de qualquer suspeita a reconsiderar as suas convicções. A cobra zumbe, apita, geme, entra em transe, fatalmente vai engolir a todos na casa. Na televisão de Peruíbe, são dois Beijocas. Possessos. Correm, chutam, bufam, roncam, esmurram, esbofeteiam. Touros bravos nas ruas de Pamplona. Todos fogem, palmeirenses e flamenguistas. Pulam nos fossos, pedem clemência, apelam a Padre Cícero.

Subitamente, o Maracanã, perplexo, silencia. As ruas ao redor, idem. Jornalistas e jogadores calam-se. Os telespectadores nem piscam. O país sucumbe, exausto. A fera interromperá em algum momento a sua jornada de socos e pontapés? A cobra, já dentro da sala, ao ver o semblante contraído de Beijoca em close-up, xingando e batendo, suspende o canto, suspende o bote, dá meia-volta e embrenha-se fugidia novamente na mata.


"No fundo, no fundo, sinto uma saudade de mamãe... sou um cara sensível", afirma o craque inesquecível, em confidência a este cronista.

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